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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

KAFKIANA - I: O LIMIAR

Toda a obra A la recherche, de M. Proust, consiste em reflexão, rumo à consciência, sobre os valores que povoaram o extenso limiar com que se confunde a vida de Marcel, como a todos sucede. Outro exemplo, extremamente sintético, mas este de configuração genérica, que ajuda a entender o limiar, proporcionam-no as análises de H. Arendt, quando, aproveitando-se da intuição de Kafka, cita uma curta parábola cujo protagonista se chama Ele.

Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto — e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite —, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre si.

Quando, uma década passada, redigi o capítulo Do limiar: estudo introdutório (de Semiótica: olhares), que em breve reeditarei em meu saite, não tinha conhecimento dessa alegoria kafkiana. Ao encontrá-la, fiquei feliz porque figurativiza à perfeição o que teoricamente consta naquele meu texto. Estava eu, então, concentrado na compreensão do espaço literário.

Tamanha é a importância atribuída por H. Arendt à narrativa kafkiana que a inclui em duas de suas obras – Entre o passado e o futuro e A vida do espírito discutindo questões que, para ela, respeitam ao tempo, segundo a concepção de E. Kant, que vê espaço e tempo como categorias distintas.

Lugar de passagem – que se presta tanto a remansoso trânsito quanto a jogos de tensão e conflito, mais ou menos violentos ou traumáticos – o limiar, assim o vejo hoje, é constructo que se presta à análise de eventos e, por consequência, implica não apenas o tempo, como entende H. Arendt, mas o espaço-tempo. Essa categoria de base para a compreensão da narrativa, que incorporo da física de A. Einstein, aguarda, há mais de um século, para ser aceita pelas epistemes chamadas, em geral, de ciências humanas.

Mas retornarei a Proust, como prometido em Proustiana - I.

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